curso de cavaquinho em casaEu venho aqui com uma missão terrível que é, de alguma maneira, discordar de que a nossa raça humana está fadada à extinção.

Em alguns milhões de anos? Alguns bilhões de anos? Ah, então tem tempo. Tem tempo pra fazer o quê? Pra que a gente se diferencie das raças que foram extintas mais rapidamente.

E eu me apeguei a um conceito filosófico de que o que nos diferencia dessas raças, dos animais, dos seres irracionais, é o pensamento e, pra muitos filósofos, é a arte.

E eu sei que tem gente que acha que não, mas a música, principalmente o rock, é arte.

Vou contar pra vocês o impacto que eu percebi com o trabalho que eu realizo. O Nenhum de Nós é uma banda que vai fazer 28 anos e o seu primeiro sucesso, das paradas de sucessos, foi uma canção chamada Camila
que falava de um tema dificílimo:  a violência contra a mulher.

Um trecho da música diz: “Por isso a vergonha do espelho naquelas marcas, os olhos insanos que passavam o dia a me vigiar“.

Nenhuma banda entra no mercado querendo fazer sucesso com um tema desses, convenhamos, né? Mas eles cometeram esse atrevimento.

E isso é pauta da banda até hoje, reforçada pelas histórias que eu vou contar aqui pra vocês. Porque, esse impacto, muitos de vocês talvez percebam, porque lembram das as músicas que marcaram algum momento e viraram trilha sonora, como se diz, de algum momento especial da vida de vocês.

Mas essas histórias que eu vou contar foram além. E tem um momento, eu falei na parada de sucessos, onde a gente tem que optar: por um caminho que leva à parada de sucessos, ou outro caminho, que leva, de uma maneira resumida, a ser um artista, a alguém que aposta na melhoria da raça humana.

Música salvando vidas

Meu primeiro exemplo é “Uma mulher de 12 anos”. Vocês vão dizer: “Mas como uma mulher de 12 anos?”

Em Caxias do Sul, a gente foi fazer um show, e uma menina de 12 anos chega com uma carta pra mim, antes do show, entrega e pede que eu não leia naquele momento. Eu pergunto a ela: “Vai vir no show à noite?”

E ela diz: “Não, eu não posso, eu tenho só 12 anos. Lê depois”.

Eu faço o show, percebo que ela não foi, pego a cartinha, que eu trouxe aqui pra vocês. A carta dizia: “Amo muito o Nenhum de Nós, foi uma banda que apesar de nem saber da minha existência sempre esteve ao meu lado, através das músicas, das palavras…das letras…de uma combinação de notas perfeita. Só por eu ter o prazer de ouvir os CDs de vocês várias vezes, sem enjoar, eu já me sentia bem. Eu só queria expor meus sentimentos por vocês
e agradecer por tudo que fizeram por mim, sem ao menos saberem que faziam bem a alguém.”

Eu imaginei que ia ser mais uma carta, ótima de se receber, mas falando como a gente foi legal e como as músicas do Nenhum de Nós são bacanas
e como eles gostam, como ela, a nossa garota, gostava muito do Nenhum de Nós, mas a carta tomou um outro rumo.

Essa menina, aos oito anos, vivia com a mãe e o pai, e o pai abandonou o lar. Eles se separaram. E ela teve que conviver com um padrasto, que aos oito anos começou a abusar dela. Aos oito anos ela começou a enfrentar coisas que a gente sabe dos casos narrados, dificílimas, e no caso dela era pior, porque ela era ameaçada constantemente caso contasse.

Bom, foi algo terrível, que a comunidade começou a descobrir, começou a isolar a garota já na escola. E aí a gente começa a acompanhar já algumas coisas que ela fala:

“Eu fiquei uma menina fechada, não saía, não me divertia, não ia na casa de amigos, não fazia nada a não ser ouvir Nenhum de Nós”.

Naquele momento, sem que eu soubesse, eu estava fazendo muito por essa menina. Naquele momento, eu na minha casa,  tocando, compondo, sem que eu soubesse, eu estava dando um amparo pra alguém que estava completamente desamparada, pois nem pra mãe ela podia falar.

Acontece que em determinado momento a mãe descobriu, botou o padrasto pra rua, o padrasto não quis abrir mão do caso, e um belo dia voltou pra levar a menina embora. Eu não vou entrar nos pormenores, mas a história terminou de maneira trágica pra ele.

Depois disso, na carta, vêm algumas das frases mais impactantes que eu já vi, alguém se referindo a sua própria vida e à relação que ela tinha com a nossa música:

“É nessas horas que se mostram os verdadeiros amigos, e poucos ficaram ao meu lado”.

Quando a história veio à tona, ela ficou sozinha.

“Hoje tenho 12 anos. E amo minha mãe, minha família, me divirto e continuo tirando boas notas na escola.”

Ela ainda se preocupava em tirar boas notas na escola. E a frase final é a que mais dói:

“Sei que só o que tenho que fazer agora é deixar florescer a menina que ainda dorme dentro de mim e esquecer a mulher que nasceu prematura”.

Imagina ler isso, e saber que a tua música foi o amigo que ela precisava. Foi o amparo que ela precisava. Isso não tem como a gente medir. Mas a partir daquele dia, se eu achava que eu tinha que fazer alguma coisa não mirando a parada de sucessos, mas a melhoria do ser humano, essa carta foi determinante pra mim.

Se eu já achava que eu tinha uma missão como artista, que não era só entregar o circo, mas ajudar as pessoas a produzir um pão que não é o pão óbvio, mas o pão espiritual, talvez. E os casos que eu vou narrar aqui, parecem tão pesados, o próximo é um pouco, mas eu tenho uma surpresa no final que é sensacional pra gente.

Fábio Santos é um amigo, eu já posso dizer hoje, de Taubaté. Eu vou escrever o depoimento dele para vocês a respeito da importância
da música do Nenhum de Nós.

“Eu tinha um irmão chamado Marcelo, que nasceu em 84, ele era mais novo que eu. E o Marcelo foi uma criança que, desde que nasceu, não enxergava, não andava, não falava, tinha muitas convulsões, e cada vez que ele tinha convulsão meus pais levavam ele para o hospital. E em uma dessas  convulsões, no ano de 89, meus pais levaram ele para o hospital, só que ele não resistiu.

Foi um momento muito difícil pra gente, com criança, assim, e na época eu não conseguia entender tudo aquilo que estava acontecendo. Nesse mesmo ano de 89,  o Nenhum lançou o álbum Cardume e uma outra frase que me marcou bastante era “quero uma chance de tentar viver sem dor”.

Mostrava pra mim que meu irmão já não estava sofrendo mais. Outro momento que me marcou bastante com o Nenhum foi em 1996, quando eles lançaram o álbum Mundo Diablo.

A primeira canção desse álbum se chamava “Vou deixar que você se vá”. E esse processo de cura interior, pra mim e pra minha família, foi devido às canções do Nenhum de Nós, especialmente “O astronauta de mármore”
e “Vou deixar que você se vá”.

Deu pra entender um pouco a relação que ele fez, né?  “Vou deixar que você se vá.”

Alguma coisa prendia a família à memória do irmão. A mãe dele passou por depressão, e essa música serviu, como ele disse, de cura. Pra um entendimento de que era o momento da família abrir mão daquela memória tão dolorida.

Não esquecer, mas abrir mão da parte da dor. E ele fala da cura familiar. De novo, eu em casa, compondo, não sei disso que está acontecendo. Mas eu tenho que ter noção disso. Eu tenho que ter noção que o que eu estou fazendo, se for bem feito, eu estou, de alguma maneira, ajudando a construir essa humanidade que não vai ser extinta tão rapidamente.

Eu estou de alguma maneira sonhando que a arte pode um pouco mais do que nos fazem crer. Quando eu falo na parada de sucessos, eu não quero tratar essas coisas com preconceito, mas a gente sabe, principalmente no Brasil, que uma música que tem um pouco mais de conteúdo perdeu espaço nessa parada de sucessos, e quem faz a escolha pelo outro caminho paga um preço. Mas é um preço que vale a pena. E como vale!

Eu vou mostrar pra vocês por que vale.

O nosso próximo caso, “Alguém especial”, Pedro Otávio, seis anos, Brasília. O Pedro, eu vou traçar um pouco de quem ele é, pra vocês. A mãe dele mandou uma carta onde descrevia o que acontecia com o Pedro.

Ele tem um quadro sindrômico com espectro autista. Não se comunica com a mãe, aliás, não se comunica com quase ninguém, o autismo tem várias características, mas uma das principais é que quem tem autismo vive em um mundo todo dele. E a comunicação com a mãe era praticamente nula,
tanto que se ela deixasse o Pedro sentado em um sofá, ou em um banco de uma praça, e saísse, ele ia ficar sentado ali.

Ele nunca chora, é uma criança que está sempre sorrindo. O mundo dele, então, contém bastante alegria. Essa é a motivação. Com um ano e meio,
ele aprendeu a ler sozinho. Mais uma característica dos autistas, né?

A capacidade extraordinária pra fazer coisas que nós, que não temos autismo, levamos muito tempo e temos muita dificuldade. Ele tem dificuldade de fala. Ele até expressa as coisas a partir da fala, mas não pra se comunicar como a gente se comunica.

E ele está com dificuldade de tratamento porque, como ele tem várias características diferentes dentro do autismo, os médicos não conseguem,
como se diz, fechar o diagnóstico. Aí um belo dia, seis da manhã, a mãe dele, Joana, estava deitada e ele chegou pra bater pra pedir pra botar um DVD.

E ela achava que era a Galinha Pintadinha pela milionésima vez. E não era, ele pediu pra colocar o Nenhum de Nós. Quando ele coloca o DVD do Nenhum de Nós começa a cantar e agir como se tivesse tocando piano.

Bom, a gente esteve em Brasília e conheceu o Pedro. E foi uma experiência inacreditável. Porque ele não parava quieto, ele vivia num outro mundo, e no momento em que alguém começava a cantar uma música do Nenhum de Nós pra ele, ele parava e prestava atenção.

A mãe dele, vendo tudo isso acontecer, encontrou um caminho pra se comunicar com o Pedro. E ela disse uma frase também genial: “O Pedro tem um mundo só dele, e, de alguma forma, o Nenhum de Nós entrou nesse mundo”.

O Nenhum de Nós abriu a porta pra mãe dele entrar. Alguém podia dizer assim: “Mas ele entende as palavras?” Entende. Foi ele que começou a bater
na cabeça, nas flores e nos pés. E a mãe começou a se comunicar com o gesto de fazer o coração com ele naquele momento em que ele sabia
que tinha que fazer.

Agora eu pergunto pra vocês, já finalizando: se a gente pode usar a música, o rock, pra melhorar o ser humano, pra gente atingir um outro estágio, nesse conceito de que todos nós somos humanidade, por que não fazer?

Por que a gente tem sempre que mirar na parada de sucessos? Por quê? Existem algumas relações, que o Sam falou lá no início, coisas invisíveis, que às vezes nos levam, nos compelem a fazer as coisas como se tivesse apenas um jeito.

Eu quero dizer a vocês que o Nenhum de Nós, morando em Porto Alegre, se recusa a aceitar esse jeito. Paga um preço, porque é difícil. Para o resto do Brasil, a gente soa estranho. Mas, depois de ver coisas como essa, a gente não vai desistir.

E se pra muita gente o Nenhum de Nós é uma banda careta, por causa disso,
porque fala de assuntos chatos. Infelizmente, se a gente tem uma missão aqui, há 28 anos que essa banda está junta, é tentar fazer com que o ser humano não se extinga tão rapidamente e se a gente puder ajudar com a nossa música, a gente vai ser bem mais feliz do que estando no alto da parada de sucessos.